domingo, 4 de abril de 2010

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Se não fosse tão afoita teria percebido, o que já era visível para todos da rua . Teria escutado os boatos ou quem sabe entendido as fofocas que sua prima fazia na floricultura. Tinha olhos, ouvidos e todo resto funcionando muito bem. O problema era a musculatura rija do seu filtro, peneira chamada vulgarmente de coração.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Minha receita secreta de bolo

No meio daquelas danças verbais foi nascendo o verão.
Antes que eu percebesse jogava fora todos os meus guarda-chuvas emocionais.
A água era boa, a temperatura era exata.
Os olhos mirando eram puro carnaval, e você era tão lindo que me deixava pasma.
Assim como cada letra calmamente virava palavra, cada palavra firmemente embebia os poros.
E no meio das rimas das suas palavras limpas me vi somente sua, poesia frouxa.
Despi a coerência e me despedi da coesão.
Me percebi coração e ri disso como um bom folião bêbado faria.
O timbre já era maior que o corpo.
O toque era somente vibração turbulenta e subjetivamente sensorial.
Me senti num poema de Fernando, com as roupas de Clarice.
A conversa era verso e eu não era contida.
Larguei os livros, te olhei de relance, entendendo plenamente o que era poesia palpável.
E assim te deixei ir...

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

5:15

Calmamente trago meu cigarro, com a serenidade de um velho no fim da vida. Me despeço aos poucos daquele gosto de tabaco que marcou nos últimos anos minha boca. Não me desespero mais. A saudade já ocupa um lugar permanente dentro de mim. Eu a aceito, como prova de uma vida bem vivida. O desespero usual dá espaço para uma silenciosa serenidade. Só escuto os carros passando, não os vejo. Em algum lugar alguém acende um cigarro no mesmo segundo que eu apago o meu. Eu respiro fundo, com os pulmões cheios ainda, abarrotados de cenas. O temor consciente é calado, o inesperado é que arranca os agudos. Calmamente acendo mais um cigarro, com a ansiedade de uma criança distraída que vive se esquecendo que ainda é uma criança.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

10 anos

Quanto eu tinha metade do tamanho que eu tenho hoje eu acreditava que quase tudo tinha vida. E para mim ter vida era falar e comer feijão. Sem esse papo de fotossíntese e dança das abelhas. Todo dia eu bagunçava o meu quarto inteiro, minha pantufa virava um carro, a almofada uma cama e o pote de gelatina era uma hidromassagem luxuosa. Até que um dia eu fiquei me perguntando o motivo de seres tão bem tratados(até hidromassagem eles tinham) não falarem comigo. Numa epifania ingênua concluí: Fome! Corri até a cozinha e enchi o prato de farinha de rosca(não sei porque diabos eu achei que barbies comiam farinha) e deixei no meio do quarto. Falei, calmamente para os meus bonecos: - Gente, eu vou sair rapidinho para vocês não violarem o código dos brinquedos. Contei até o número que eu sabia contar e entrei no quarto que estava com farinha espalhada por todos os cantos! Corri euforicamente até o quarto da minha mãe, gritando: eles tem vidaaaaa! Minha mãe com medo da filha ser esquizofrênica foi correndo para o quarto, e com uma cara cheia de dó olhou para o teto e para o imenso ventilador que estava ligado.

domingo, 15 de novembro de 2009

"(,)"

Desculpe o atraso, é que eu ando meio ocupada em desocupar minha cabeça, ocupando meu corpo com novas funções. Não me lembro de nada. Nunca fui, hoje apenas sou. Não escuto mais as queixas do passado e sinto hoje o futuro como palavra simbólica. Uso. Sou usada. Não vejo mais pecado em ser. Sentir é para os outros. Hoje gosto de presumir que penso. Não penso. Me deixo abusar. Abuso. Treino diariamente as delícias e os perigos de apenas ser. Tenho vontade. Faço. Quando a culpa me toma, paro. Definitivamente a moral é um comportamento aprendido. Escuto. Falam que é falta de amor próprio. Ignoro. A falta de cautela me faz rir mais. Sou dona da epiderme, do conjuntivo e da hipófise, o resto é hipótese. Nunca fui só tecido. Onde escondem tutano? Talvez a alma se esconda numa comunicação, sinapse. Não sei. Nunca soube. Hoje não me interessa tanto saber. Meu tempo dura apenas enquanto dura o gole. Engulo. Engasgo. Cuspo fora e bloqueio a memória. Trauma de infância. Tramas da vida. Não devo. Pago. Me aceito. Empresto. Me busco. Peço reembolso. Penso. Repenso. Me culpo. Definitivamente é tudo diário de campo. E hoje só(,) acampo em mim.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

"Transpir(à)ção"

Quero um canto verdadeiro, não esses gritos, falsos agúdos.
Desprezo a sua proteção, rezas e mandingas poucas, meu pescoço transpira orixás.
Búzios, pedras, cristais, tudo pirataria de gente descrente, eu creio na boa vontade dos homens e mulheres de bem.
E enquanto perceber um sorriso sincero continuarei bem, sabendo que o tombo pode ser também meu fiel escudeiro.
Não tenho medo dos calos, pois só eles saberão entender as rugas espirituais que tenho em mim.
Agradeço os beijos, abraços, falsos ou não, todo esforço merece uma dádiva.
Os anos nos ensinam a forçar os músculos faciais e aprender a crescer junto com o ponteiro.
Vejo menos quantidade e mais qualidade nos lírios ao meu redor. Abandono as igrejas, templos e altares, hoje prefiro ficar em casa.
E saborear o tanto que essa vidinha mansa é boa.
Nada de santas chorando sangue aqui, ou cegos enxergando impérios, não precisamos de milagres, sabemos viver.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

21 anos

Eu fico pensando em todas as casas que tive, casas corpo, casas móveis, casas palco e casas causas.
Lembro de quando me deitava em laranjeiras, acordava na lagoa e deslizava pelo humaitá. Lembro de todos os quartos, todos os cómodos acomodados e serelepes que tive.
Um dia sorri Brasília, chovi 309 e fui brotar 316, numa piscada não via mais o posto nove dormindo com minha mãe em Ipanema.
Quando era criança queria ser bióloga para treinar golfinhos, hoje tudo o que quero é "destreinar" algum lobo que nem em sonho vi. Nunca sonhei com uma passarela, já pensei em ser atriz, mas isso já se nasce sendo. Pensei em musicar sentimentos, percebi que já falava. Fotografei amigos para ter certeza de como os via. Bati o carro para testar o meu seguro. Pintei os cabelos de preto para ter certeza que aquela cor não me caia bem. Namorei artistas só para poder estar perto, beijei um advogado para matar a minha subjetividade. Não o beijei novamente. Bebi tudo o que vi pela minha frente para esquecer um amor antigo, acabei quase esquecendo meu próprio nome. Sai de salto alto sabendo que acabaria descalça. Mudei de manequim. Coloquei um piercing. Fiz uma tatuagem. Viajei com meus melhores amigos para as melhores praias, as nossas. Escrevi como tratamento. Frequentei uma psicóloga para ouvir tudo o que eu já sabia. Quis casar com um sebo e acabei flertando com uma "fnac". Dormi uma semana inteira no sofá. Pintei as unhas de cores berrantes. Tentei roer, achei sem graça. Ri tanto que quebrei um salto. Fiz tragédias gregas com novelas mexicanas. Prometi que começaria uma dieta segunda e logo em seguida comi brigadeiro. Pintei um quadro. Contei piadas estúpidas só para poder fazer meus amigos rirem. Coloquei no colo minha irmã. Fui à missa e percebi que prefiro igrejas vazias. Comprei uma árvore e quase a deixei morrer seca. Passei 9.000 músicas para o meu mp3 para acabar escutando 9.000 vezes a mesma música. Entrei na academia, sai da academia, percebi que preferia yoga. Descobri que prefiro arroz integral. Descobri que prefiro homens morenos. Li Fernando, Clarice, Humberto. Li Gabriel, reli, li, e acho que continuarei o lendo por toda minha vida. Fiz teatro. Chorei quando vi Medéia. Senti saudade do Rio. Perdoei o meu passado. Quase aprendi a andar de bicicleta com 20 anos, com a ajuda dos meus primos, de 6. Dancei com a minha irmã na sala, e foi mais divertido que qualquer festa cheia de gente. Toquei violão com meu pai no meu aniversário e tirei uma foto. Fui no casamento do irmão do meu melhor amigo.Quase morri com ele afogada em "malibu". Coloquei muita gente no colo. Percebi como é bom chorar no colo dos pais. Vi meus pais virarem meus amigos. Vi meus pais fragéis. Percebi que a minha irmã ficará mais alta do que eu. Encaixotei sozinha 2 apartamentos. Morei sozinha, com meus pais, com minha mãe, com meu pai, com uma amiga e percebi que deveria antes de tudo morar comigo. Chorei 3 dias seguidos por causa do homem errado no colo no homem certo. Nunca mais chorei assim por homem nenhum. Achei que meu grande amor fosse um futuro diplomáta, tive certeza disso, e o deixei ir em paz. Pensei em mudar para Israel só para poder ter uma conversa. Vi meus amigos terem filhos, achei lindo, mas dei graças à deus que não foi comigo. Reli pequeno príncipe. Jurei todo verão que iria fazer trabalho comunitário. Tirei a carteira de motorista. Comprei uma bolsa laranja. Me fantasiei para festas. Me fantasiei para ficar em casa. Amei profundamente e "desamei" em 5 segundos. Quis saber "desamar" depois de 20 anos e não consegui. Comprei lençóis e toalhas. Quebrei pratos e copos. Manchei meu tapete de vinho tinto. Aprendi a gostar de vinhos secos. Descobri que não gosto de chopp. Descobri que não gosto de mulheres. Aprendi a gostar de mim. Sai correndo de madrugada para descobrir que você foi comprar trankinas. Escutei roque e entendi bossa nova. Aprendi a não sentir. Esqueci como não se sentia e senti tudo de novo. Percebi como era sortuda de ter os amigos que tenho. Admirei profundamente cada um deles. Tentei ser imparcial e percebi que essa "qualidade" não era minha. Falei a coisa certa na hora certa, para depois perceber que estava falando para a pessoa errada. Fui imensamente feliz e completamente triste. Respeitei a minha tristeza e soube não "desrespeitar" minha gargalhada. Depois de tudo isso é realmente fantástico saber que ainda tem muita coisa pela frente.